Nosso decaimento místico

Nosso decaimento místico

Numa manhã de sábado, ensolarada, ainda que em períodos de chuva, estava tomando meu café matinal e escutando a obra de Bach, que logo me levou a pensamentos etereos. A música clássica tem esse poder, traz uma mística que nos convoca a fazer reflexões mais profundas, principalmente pelas suas harmonias com inversões de acordes, que é quando se troca o baixo (nota mais grave) e mantém as notas que compõe o acorde original. Se quiser vivenciar essa sensação, escute Sleepers Awake (Wachet auf, ruft uns die Stimme, BWV 140). Então nesse processo me peguei pensando sobre o fato de perdermos nossa identidade como civilização a medida que o tempo avança e novos aspectos, sejam eles positivos ou negativos, vão dominando a mente coletiva, e a massa progressivamente vai manifestando isso na matéria e reproduzindo essas formas mentais. Isso é algo cíclico, acontece e tem acontecido desde o Egito, que teve seu ápice como civilização virtuosa e também tempos de declínio, onde perderam-se parte de seus valores e também de sua mística. E ainda estamos fazendo parte desse declínio, decaindo e decaindo. A mística que resta é cada vez mais escassa, tratada como fantasia e bobagem, e quem estuda ou fala sobre, considerado louco.

Se falarmos em mística, a civilização egípcia foi um marco nesse tema, porém não precisamos voltar tanto na linha do tempo cronológico para encontrar mística, mesmo que em menor escala. Em períodos medievais, era habitual que houvesse magos/conselheiros esotéricos nas cortes reais, que eram considerados um símbolo de sabedoria, e que tinham ligação com o divino e com a natureza, grandes estudiosos das ciências ocultas. Manipulava palavras, símbolos e elementos. Era responsável também por orientar o rei em sua jornada interior e exterior, alinhando o destino do reino e seu povo.

Eles estudavam as fases da lua e movimento dos ciclos naturais antes das batalhas, as propriedades alquímicas dos materiais, efeitos da astrologia, astronomia e seus efeitos na comunidade que ali vivia.

A mística na história

Temos como exemplo Merlim, o famoso mago do mito do Rei Arthur, que apesar de não sabermos historicamente se de fato ele existiu, podemos dizer que provavelmente foi inspirado em figuras da época que fazia o mesmo papel.
Ele simbolizava a sabedoria ancestral e segundo o mito tinha habilidades ocultas em relação as forças da natureza. Era o guardião dos mistérios, e era conhecido como aquele que vê além da matéria e que compreendia os ciclos invisíveis que regem a vida do homem.

Devemos citar também John Dee (1527–1608), que foi conselheiro da rainha Elizabeth I. Ele era matemático, astrônomo, astrólogo e ocultista inglês. Uma de suas obras mais famosas é a Mônada hieroglífica (foto), repleto de simbolismo místico, sobre as forças da natuza.

Ele também é conhecido por ter sido o 007 original , não como conhecemos hoje com aquela coisa de filme de hollywood, mas porque assianava algumas de suas cartas com esse número, para designar apenas aos olhos da rainha, é dito que os números "00" duplicados, seriam o simbolismo dos olhos da rainha, e o número 7 é o número místico que vemos na natueza, como as sete cores do arco íris, os sete corpos do ser humano, os sete dias da criação e assim por diante. Ele também fazia o papel de viajar pela região e países da europa coletando informações em nome da rainha, reunindo assim, o trabalho de um consultor/espião, porém com magia cerimonial e conhecimento místico. Uma curiosidade é que ele estudou no Trinity College em Cambridge, que tinha foco principal em matemática, ciências naturais e filosofia, que costumava reunir grandes mentes estudando lá, inclusive Isaac Newton. E tanto John Dee quanto Newton se interessaram por ocultismo e mais especificamente por alquimia nessa fase.

Inclusive Isaac Newton escreveu mais sobre alquimia do que física, ou seja, sua obra ocultista é maior do que a de física. Os manuscritos de newton sobre alquimia surgiram num leilão da Sotheby’s. Foram comprados em parte por John Maynard Keynes, um famoso economista inglês. E em posse desses escritos, disse:

“Newton não foi o primeiro da era da razão. Foi o último dos magos.”

Então, para quem acha que Newton foi um símbolo apenas ciência exata e moderna, repense suas percepções, pois um ciêntista da magnitude dele, sabia que não é possível se aproximar dos mistérios da natureza apenas com fórmulas da matéria, é necessário ir além. Para quem tiver mais interesse, pode ler o livro:

Isaac Newton: The Last Sorcerer (O último mago)

E se continuarmos passeando pela história vamos esbarrar em muitos místicos que eram conselheiros, como por exemplo: Nostradamus (1503–1566), que serviu Catarina de Médici (rainha da França). Foi astrólogo, vidente e médico da corte real. Ganhou a credibilidade da rainha por prever a morte do rei Henrique II em um torneio. Fazia previsões astrológicas sobre os filhos de Catarina e também sobre o trono. Suas profecias ficaram famosas, e hoje é possível encontrar vários livros em português do Brasil e documentários da History sobre o tema. O livro original foi escrito em francês arcaico e se chama: Les Prophéties (1555–1568).

Existe também uma tradução em inglês muito respeitada de Henry C. Roberts. Que pode ser acessada por aqui: https://archive.org/details/dli.ministry.01432/page/n1/mode/2up

Temos também Paracelso (1493–1541), médico, alquimista e filósofo suíço. Desde criança foi exposto a alquimia e astrologia, aprendendo com seu pai e anciãos locais de onde morava. Formou-se em medicina na Itália. Durante a juventude trabalhou em minas, onde observou doenças causadas por vapores metálicos, que influenciaram sua investigação posterior sobre minerais. Ele acreditava que o médico deveria ser um viajante, e assim percorreu a Europa, absorvendo conhecimento de várias fontes, como alquimistas, curandeiros, parteiras e feiticeiros. Essa diversidade de conhecimento, lhe deu uma abertura para uma medicina mais mística. Ele introduziu o conceito da Tria Prima (Trindade Alquímica).

Enxofre = combustibilidade. Mercúrio = liquidez. Sal = estabilidade. Para ele, elementos fundamentais na saúde humana. Foi pioneiro no uso de substâncias químicas e minerais na medicina, e é o dono da frase famosa:

"Sola dosis facit venenum."
(Somente a dose faz o veneno.)
Paracelso

Paracelso dizia que a medicina não podia ser separada da alquimia, da astrologia e da espiritualidade. Ele via o ser humano como um microcosmo que refletia o macrocosmo do universo, acreditava que as estrelas influenciavam a saude também. Ele ensinava que existe um espírito vital interno, o Arquéus que é responsável por coordenar as funções do corpo e fazer a ponte entre o físico e o espiritual, e que a saúde depende do equilibrio desse espírito vital com essas forças cósmicas.

Desenvolveu o conceito de Iliaster, que é a matéria primordial que une o corpo e alma, representando a essência da criação. Uma de suas principais obras é a Die große Wundartzney (O grande livro da cirurgia), em inglês: Paracelsus’s Great Wound Surgery. O livro original é escrito em alemão arcaico, então a tradução para inglês é difícil de achar, até hoje não encontrei uma versão da mesma.

Cornelius Agrippa (1486–1535) é mais um exemplo de pura mística, e assim como várias outras pessoas notáveis da história, tinha habilidades multidisplinares, coisa que era mais abrangente no renascimento. Filósofo, médico, alquimista, astrólogo, advogado e teólogo. Serviu como médico e conselheiro a varios nobres europeus, e também ao imperador Romano Maximiliano I, no qual era dedicado aos estudos de ciências ocultas. Ele é o autor de várias obras respeitadas no meio ocultista e serviu de inspiração para investigadores dos mistérios da natureza posteriores que vieram na história, como por exemplo: Giordano Bruno. Sua principal obra foi o De Occulta Philosophia. A obra tem elementos de hermetismo, cabala, neoplatonismo e cristianismo místico. Essa obra pode ser encontrada em português do Brasil como: "Três livros de filosofia oculta".

Giordano Bruno (1548–1600), filósofo, ocultista e cosmólogo italiano. Se tornou padre (frade dominicano) aos 24 anos e tinha sólida formação em teologia. Logo depois saiu da ordem dominicana, e passou a viajar pela Europa de forma independente, se tornando professor itinerante e filósofo, dava aulas sobre os assuntos onde passava. Publicou obras de cosmologia, filosofia, memória e magia natural. Ele acreditava em um Deus infinito, onde não poderia ser contido dentro de uma religião com dogmas e rótulos, via o universo como a expressão da unidade. Dizia que a alma é imortal e universal, para ele, toda alma faz parte de um princípio eterno e divino que permeia o cosmos. Foi perseguido pela inquisição e na época chamou a atenção de Henrique III na frança, que chegou a oferecer proteção a Bruno e manifestou interesse nas suas ideias sobre mnemônica e ciência. Também teve contato com várias outras cortes pelo mundo e paricipava de círculos intelectuais aristocratas, devido o seu conhecimento místico. Após 8 anos de julgamento na inquisição, recusou negar suas ideias sobre o Deus infinito, e foi queimado vivo em 1600, em Roma, acusado de heresia.

Algumas de suas obras:

Quem quiser conhecer mais sobre a história de Giordano Bruno, pode assistir ao episódio 1 da série Cosmos: Odisseia no Espaço, que podem ver um pedacinho no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=xfhmdG5YM5s

Ou o episódio completo no youtube também: https://www.youtube.com/watch?v=-yR8meUcCa8Ou seja, essas figuras poderiam tanto ser reverenciadas por sua sabedoria quanto perseguidos, apenas pela mudança na forma de pensar da corte, política ou religão dominante na época em que viviam, por isso falo na introdução que a massa é influenciada de tal maneira por essas esferas sociais "superiores", que manifestam as formas mentais induzidas por eles, para que sejam os responsáveis por deliberar as ações crueis em busca de poder.

A estátua de Giordano Bruno em Piazza Campo de' Fiori – Roma, Itália

E poderíamos continuar falando de vários e vários místicos que estiveram presentes na história e dedicados a avançar a civilização de seus períodos, tanto em ciência quanto espiritualidade. E vários deles, foram perseguidos e mortos pela igreja acusados de serem hereges... até mesmo os cavaleiros templários que trabalhavam em prol da igreja. Tamanha hipocresia, tudo por medo de perder o poder e controle das massas, quando a verdade é que esses místicos estavam mais próximos do divino, fazendo o bem e buscando a unidade.

Tempos Modernos

Quem já tem mais de 30 e morou em cidades do interior, deve lembrar que era algo comum encontrar senhorinhas que tem habilidades espirituais de cura, chamadas popularmente como benzedeiras ou curandeiras. Em cada cidade existia uma ou mais autoridades místicas que eram procuradas para resolver conflitos espirituais ou doenças que não tinham explicação pela ciência. Também lembro que era comum levar crianças recém nascidas para benzer, que era uma prática de mística para proteção e boa sorte.

Essas senhoras, foi o que nos sobrou de nossa cultura mística de antepassados que covivem junto ao povo, fazendo analogia com os conselheiros esotéricos que falamos a pouco. Exceto pelos Xamãs em tribos indígenas, que são líderes espirituais que atuam na cura mística, mas que pouca gente tem acesso e pelos grupos mais seletos, que não são comuns entre as pessoas da civilização atual, e são tradas até como algo estranho. Hoje podemos citar alguns desses grupos como: Rosa Cruz, Sociedade Teosófica, Maçonaria, Ordem Hermética da Aurora Dourada e outras escolas de filosofia natural que ainda reunem um pequeno grupo de pessoas que seguem estudando as ciências ocultas, para que, em algum grau, mesmo que muito pequeno, possamos guardar nossa mística, esperando que em um próximo ciclo de nossa civilização, isso possa voltar a ser parte de nossas vidas.

MM